Luz na periferia: Conheça a história da empresária que venceu a fome e hoje ascende a sua comunidade
Veja como a empresária Luz Silva superou as desigualdades sociais e se tornou um exemplo de superação para o bairro de Jardim Fragoso, em Olinda
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Com um nome que faz jus ao seu compromisso de ajudar o próximo e simboliza esperança em momentos difíceis, Luz Silva, de 43 anos, é conhecida como um exemplo de superação entre os moradores do bairro de Jardim Fragoso, na periferia da cidade de Olinda, Região Metropolitana do Recife.
Filha de pais analfabetos e com uma infância marcada pela experiência da fome, a empresária do setor de moda feminina, que hoje dedica parte de seu tempo a projetos sociais em sua comunidade, é um exemplo de que a força de vontade e o interesse pela educação podem ser poderosos aliados na superação das desigualdades.
Ela conta que, junto ao seu pai, percorria os lixões da localidade para ajudar a sustentar a casa da sua família. Mesmo com a barriga vazia e com a pouca força física, devido a sua pequena estatura, a então menina auxiliava o catador de materiais recicláveis na separação dos objetos, enquanto tentava encontrar nos entulhos algum resto de comida para se alimentar.
“Eu passei por muitas dificuldades, enfrentei a fome e precisei entrar no lixo para sobreviver. Muitas vezes, eu me via no lixão, tentando encontrar frutas. Retirava as partes estragadas para aproveitar o que restava e conseguir me alimentar. Era uma situação extremamente triste e difícil”, relembra Luz.
Após o dia inteiro nas ruas, exposta à chuva e ao sol, ela retornava para casa exausta, sem direito a um descanso digno. Alimentava-se com o que sua mãe conseguia preparar a partir dos restos encontrados no lixo; tomava banho com um sabão amarelo, o mesmo usado para lavar os pratos da residência; e escovava os dentes com o dedo indicador e açúcar, pois não tinha escova e creme dental. Esse ciclo se repetia todas as noites.
No dia seguinte, Luz estava novamente de pé, apesar de não ter tido uma noite de sono confortável, após passar a madrugada em um colchão improvisado, feito de capim, que seus pais preparavam para ela e sua irmã.
Mesmo diante dessas dificuldades, ela fazia questão de se mostrar prestativa, esforçando-se para ajudar da maneira que podia. Quando não estava catando materiais recicláveis, cuidava dos porcos que a família vendia ou se dedicava à venda de picolés, esterco para plantas e água mineral.
A menina, os obstáculos e um sonho
"Não me perdi." É com essa frase que Luz define a forma como conseguiu driblar todos os obstáculos que enfrentou ao longo da vida, incluindo um abuso sexual aos 8 anos e o colapso mental de seu pai aos 10 anos.
Criada em uma das comunidades mais vulneráveis do Grande Recife, a ex-catadora também testemunhou os inúmeros problemas crônicos do bairro, como a violência provocada pelo tráfico de drogas, pobreza extrema e enchentes periódicas - causadas pelo transbordamento do canal que corta a localidade.
"Não bastavam os sufocos enfrentados pela minha família, eu também testemunhei muitas coisas ruins daqui de dentro. No inverno, vi e ainda vejo a água suja do canal do Fragoso invadir as casas dos meus vizinhos. Acompanhei de perto as mortes e as prisões de muitos jovens da comunidade devido às drogas. Vi amigos indo dormir sem ter o que comer na mesa", detalha a empreendedora, que atribui esses problemas à falta de políticas públicas eficazes para a região.
Embora sua juventude tenha sido marcada pelas incertezas sobre o futuro, ela afirma que nunca permitiu que esses obstáculos tirassem de seus pensamentos o que considerava seu maior impulso: o desejo de mudar de vida por meio dos estudos.
"A minha mãe e o meu pai me ajudaram a driblar tudo aquilo que poderia desviar o meu foco. Embora não tenham tido a oportunidade de estudar nas suas épocas, sempre me mostraram que era na escola que eu poderia mudar o rumo da minha trajetória. A mulher que sou hoje é graças a duas pessoas que nunca me permitiram desistir", afirma, emocionada.
Virada de chave
Motivada por esse apoio familiar, Luz conseguiu alcançar seus primeiros objetivos: concluiu o magistério, tornando-se professora de educação infantil, e, em seguida, se formou no curso técnico de enfermagem.
“Foi com os diplomas na mão que percebi que era ali que podia mudar a minha realidade e da minha comunidade. Com o magistério, tive a oportunidade de trabalhar quatro anos pela Prefeitura de Olinda em uma escola do bairro. Digo com orgulho que muitos adultos de Jardim Fragoso foram alfabetizados por mim. Já quando fui para a área de enfermagem, pude prestar alguns serviços para moradores que tanto necessitavam de cuidados de profissionais da saúde”, relata.
Posteriormente, em busca de novos desafios, a jovem ingressou na segurança pública, prestando concurso para a Polícia Militar de Pernambuco (PMPE), onde trabalhou por 14 anos e foi promovida ao posto de sargenta, ocupação que atualmente está de licença especial.
Um empreendimento que ascende mulheres
Após conquistar diversos objetivos, Luz logo se tornou assunto na comunidade devido a sua trajetória inspiradora. Mas a ex-catadora ainda tinha um sonho a ser realizado, um desejo que considerava sua verdadeira paixão. Ela queria se tornar um nome forte no empreendedorismo feminino.
Foi assim que, em 2017, Luz decidiu abrir seu próprio negócio. Com apenas R$ 232 no bolso, um provador improvisado e a força de vontade de bater de porta em porta para vender as suas peças, a empreendedora inaugurou a Luz Modas, empresa que hoje é referência nacional no ramo de moda evangélica feminina.
E não parou por aí: a filha empreendedora da família Silva usou sua marca como plataforma para empoderar outras mulheres ao seu redor, criando uma rede de apoio e oportunidades.
“O tempo foi passando e várias mulheres foram acreditando na minha ideia de empoderá-las. As trabalhadoras da minha empresa têm a oportunidade de revender as peças, e todo o processo é pensado para garantir que elas possam adquirir os produtos a preços acessíveis. São essas roupas que permitem que elas comprem o leite das crianças, paguem as contas de energia, o pão da semana e tantas outras despesas. Isso não só renova a autoestima delas, mas também estimula a independência financeira de cada uma”, fala, orgulhosa.
As colaboradoras, moradoras de Jardim Fragoso, são as mãos que dão vida à produção das roupas, desempenhando suas funções em um centro de distribuição estrategicamente localizado no bairro. Essas peças, fruto da dedicação local, ganham o Brasil através do trabalho de mais de 13 mil sacoleiras, que compram as roupas e as revendem. Atualmente, o negócio fatura R$ 200 mil por mês.
Para Dayane Severina da Silva, de 30 anos, a Luz Modas foi um divisor de águas em sua vida. Natural de Caruaru, no Agreste pernambucano, ela chegou ao bairro e se deparou com uma realidade desafiadora, onde dependia do apoio do marido para cobrir as necessidades básicas de sua casa.
“Tenho três filhas e, logo que a mais nova nasceu, me vi em uma situação apertada. Mesmo com meu marido sendo um bom companheiro e nunca me negando nada, eu sentia a necessidade de contribuir financeiramente para as despesas da casa. Foi então que uma funcionária da empresa me indicou a Luz, e logo comecei a atuar nas vendas”, relembra.
Com a carteira de trabalho assinada e os direitos trabalhistas garantidos, Dayane se orgulha de fazer parte de uma empresa que incentiva a inserção de mulheres no mercado de trabalho. Segundo ela, esse ambiente de apoio e incentivo é uma fonte constante de motivação.
“Para uma mulher que não sabia nem mexer no WhatsApp, hoje consigo vender e desempenhar muito bem a minha função. Isso tudo ocorre pois fui capacitada a ser a melhor sempre”, afirma.
Outra funcionária que se diz satisfeita com a experiência de trabalhar na empresa é Katherine Antão, de 36 anos. A trabalhadora acredita que, por Luz ter vivido na pele as desigualdades sociais, ela consegue olhar para suas colaboradoras com mais empatia.
"A história dela foi extremamente difícil. Mas sua trajetória como mulher negra inspira outras mulheres que se identificam com essas vivências e mostra que uma rede de apoio forte é o que realmente fará muitas de nós vitoriosas. Que isso sirva de exemplo para outras empresárias", ressalta Katherine.
Luz é uma das muitas mulheres negras que impulsionam o empreendedorismo no Brasil. Essas mulheres representam 47% das empreendedoras do país, segundo pesquisa conduzida pelo Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE).
Exemplo de solidariedade
Sempre em busca de mais do que seu próprio crescimento, Luz se dedica a proporcionar uma vida melhor para os moradores de Jardim Fragoso e de bairros adjacentes.
Sem perspectivas de melhorias para a área por parte do poder público, a empreendedora reflete a importância de exercer a solidariedade. Ela vive esse valor tanto nos momentos de adversidade, quando as águas do canal do Fragoso invadem as casas da localidade, quanto nas épocas festivas ao longo do ano.
"Nos momentos difíceis, como quando o canal transborda, realizamos ações coletivas, preparando refeições e kits de higiene para os moradores afetados pela enchente. Já nos períodos de celebração, como no São João, distribuímos espigas de milho para tantas pessoas que, muitas vezes, não têm condições de comprar", revela.
No São João de 2024, a empresária acordou a comunidade nas primeiras horas do dia para doar 15 mil espigas de milho. Com a ação, ela beneficiou 600 famílias. Para este ano, Luz espera ampliar esse número, com a meta de alcançar mais de mil núcleos familiares.
O olhar para as novas gerações
Os projetos sociais que ganham vida nas ruas e vielas de Jardim Fragoso também têm uma importante missão: construir um futuro mais promissor para as novas gerações. Com esse propósito em mente, em fevereiro do ano passado, a empresária fundou uma escolinha de futebol, com a missão de oferecer lazer e esporte para crianças e adolescentes.
Com um crescimento expressivo, o projeto que começou com apenas oito crianças, agora atende mais de 60 inscritos nas categorias sub-11, sub-13 e sub-15. Os grupos contam com o apoio de um profissional de educação física e dois voluntários.
“A faixa etária escolhida enfrenta um grande risco aqui na comunidade, que é o tráfico de drogas. Então esse projeto veio para ocupar a mente desses menores e afastar deles qualquer ameaça”, afirma Luz.
Embora seja uma excelente opção de divertimento para os menores, é fundamental que, para participarem das aulas, as crianças e adolescentes estejam regularmente matriculados em uma instituição de ensino, com bom desempenho escolar, e que mantenham acompanhamento médico com pediatra.
“Na comunidade, a realidade é que muitos pais só levam as suas crianças ao pediatra em situações de emergência ou quando elas estão doentes. Então com essas exigências reforço a necessidade desses menores sempre irem às consultas médicas. Quanto à educação, o requisito é que estejam matriculadas e com bom desempenho escolar. Se uma criança não estiver indo bem, buscamos o apoio da família e conversamos com a criança para entender como podemos ajudar a melhorar essa situação”, explica.
Luz compartilha com entusiasmo que as mães têm cumprido as regras do projeto com dedicação, e a iniciativa tem sido amplamente acolhida pela comunidade. "Elas se revezam na tarefa de lavar os uniformes do time e demonstram o imenso orgulho de ver seus filhos participando da escolinha de futebol".
No entanto, as ações sociais voltadas para esse público vão muito além da escolinha de futebol. Luz já está planejando novos benefícios, com destaque para a criação de um programa de reforço escolar, que será implementado nos próximos meses no bairro.
De Jardim Fragoso para o mundo
Com uma trajetória inspiradora, que já foi tema de diversas reportagens e destaque em programas de televisão, Luz continua a motivar muitas pessoas. Em novembro do ano passado, a empresária emocionou o Brasil ao ter a sua história contada no programa Hora do Faro, da TV Record.
Hoje, ela contempla com imenso orgulho tudo o que tem conquistado e reafirma o poder de ser uma mulher preta e periférica, ganhando visibilidade e alcançando um feito que nunca imaginou: ser a primeira pessoa milionária de uma família que, há alguns anos, vivia à margem da extrema pobreza.
Recentemente, Luz recebeu uma oportunidade única de compartilhar sua história com o mundo. Em dezembro, embarcou em sua primeira viagem internacional para divulgar um livro sobre empreendedorismo em Dubai, nos Emirados Árabes, no qual colaborou como autora.
Com o título Vender é Minha Arte, a obra reúne textos de 27 experts em vendas, empresários, mentores, treinadores e palestrantes. O livro tem como objetivo conectar o leitor a conceitos e estratégias avançadas, oferecendo novas ideias, ações e resultados para repensar e transformar sua abordagem de vendas.
Luz atribui todo o seu sucesso aos ensinamentos e experiências adquiridos em seu bairro, que ela faz questão de chamar de lar até hoje. Embora já tenha recebido diversas propostas para se mudar, ela as rejeita, afirmando que foi na localidade que aprendeu os valores da persistência, da resiliência e da solidariedade.
“Enxergo potencial na minha comunidade. Não troco meu Jardim Fragoso por nenhum lugar”, diz.